Artigo

Semana Santa: SEXTA-FEIRA DA PAIXÃO

Ele não tinha mais formosura!

Eis o lenho da cruz,
do qual pendeu a salvação do mundo.
Vinde adoremos! 

Adoramos, Senhor, vosso madeiro;
vossa ressurreição nós celebramos.
Veio a alegria para o mundo inteiro
por essa cruz que hoje veneramos!

(Liturgia da Sexta-feira da Paixão)

            Os apóstolos se deram conta da diferença. E como! Na transfiguração o rosto do Mestre brilhava e suas vestes eram tão brancas que lavandeiro alguém conseguia fazer tão alvas!

            A cerimônia se realiza pelas três horas da tarde. Tudo é silêncio. Os celebrantes, vestidos do vermelho dos mártires, penetram silenciosos no templo. Prostram-se por terra. Desolação.

            Erguendo-se da prostração o celebrante diz: “Ó Deus, foi por nós que o Cristo, vosso Filho, derramando o seu sangue, instituiu o mistério da Páscoa. Lembrai-vos sempre de vossas misericórdias, e santificai-nos pela vossa constante proteção”.

            Sexta-feira da Paixão é, efetivamente, o dia das manifestações das misericórdias de Deus. Os fieis, humildes e recolhidos, querem contemplar esse que amou até o fim. As cerimônias se passam em quatro momentos: Liturgia da Palavra, Oração dos Fieis, Adoração da Cruz e Comunhão (com reserva consagrada na véspera).

            A cruz é o emblema do cristianismo, a figura com a qual é identificado. A razão é muito simples: esse Jesus que confessamos como nosso Salvador, morreu pregado na cruz, é o Crucificado.

            A crucifixão era um terrível suplício reservado pelos romanos quase exclusivamente aos escravos, réus de delitos especialmente odiosos, morte atroz, mors turpissima. O suplício foi abolido por Constantino. Compreendemos que Paulo tenha dificuldade em anunciar a salvação a partir da loucura da cruz.

            Lemos o relato da Paixão segundo João. Trata-se de um texto em que a morte de cruz é apresentada como manifestação de sua glória: “Quando eu for elevado atrairei todos a mim” (Jo 12,32). Assim como Moisés tinha levantado a serpente de bronze no deserto, da mesma forma Jesus será erguido. Um autor espanhol assim escreve: “João dá a seu relato a forma de uma entronização. Jesus é apresentado por Pilatos revestido de um manto de púrpura; recebe o título de Rei afixado junto à cruz. Sua última palavra é: “Tudo está consumado”. Tudo acontece para que se cumpram as Escrituras”.

            É de João, e só de João, o detalhe da lança que perfura o peito de Jesus. Dali correm sangue e água, sinais de vida e de fecundidade. Os olhos de todos se voltarão para aquele que crucificaram… a cruz é gloriosa.

            Jesus, sabendo que tudo estava consumado, a fim de que se cumprisse a Escritura disse: “Tenho sede”. Havia perto um vaso cheio de vinagre. Depois de ter provado a bebida, diz: “Tudo está consumado”. Inclinando a cabeça, diz João, Ele entregou o espírito.

            Jesus vive a morte não como um fim, mas como realização, cumprimento das Escrituras, cumprimento de sua missão, cumprimento de sua obediência e de sua liberdade. Um autor chama atenção: “Jesus, antes de morrer, inclina a cabeça, como para exprimir assentimento, obediência, um ato de liberdade”.

            A morte é, para Cristo, também realização e cumprimento de seu desejo, de sua sede que não seria satisfeita tomando um gole da bebida, mas no abraço com o Pai do qual sempre fez a vontade.

            A morte de Jesus aparece ainda como realização ou cumprimento do amor. A cruz é símbolo de uma vida doada, dada até o fim. A morte de Jesus não foi acontecimento suportado, mas um ato do qual ele é sujeito. Jesus dá sua vida. O verbo que João escolhe para indicar o morrer de Cristo designa o ato de um vivente. João não diz que Jesus morreu, mas que “entregou o espírito” (Jo 19,30). Trata-se de uma ação consciente e livre de um ser vivo. Depois de ter dado tudo, dá também o seu espírito.

            “A morte, como entrega do Espírito Santo, torna-se um Pentecostes, acontecimento que transmite o princípio da vida espiritual à existência do cristão. Desta forma se define ulteriormente a concepção da morte de Jesus no quarto evangelho: a morte é glória. A glória do amor vence a morte e lhe dá um outro significado fazendo dela ocasião de dom. Jesus aparece como rei (pense-se na coroa de espinhos) e sua via crucis é, na verdade um cortejo de entronização real. A cruz é, antes de tudo, julgamento do mundo, é um caminho na direção do Pai, é êxodo rumo ao Pai. Uma Páscoa, uma passagem deste mundo ao Pai. Na cruz, para João, já está incluída a totalidade do mistério pascal” (Testi per Le celebrazioni eucaristiche di Quaresima e tempo di Pasqua, Comunità di Bose, Vita e Pensiero, Milano 2006, p. 34-35).

            Aderir ao mistério de Cristo é deitar na cruz com Cristo, ser com Ele elevado e nele morrer. Não é isso que vivemos intensamente na Sexta-feira das Dores? Ou na Sexta-feira luminosa? Aceitamos que de cada uma de nossas mortes jorre uma fonte de vida. Morremos a tudo aquilo que nos impede de ser nós mesmos, de saltar, livres. A cruz atravessa nossas noites. Através dos ritos da Sexta-feira Santa nosso ser, nossas lágrimas e nossas alegrias é que são transformadas.

            Melitão de Sardes (séc. II), nos ajuda a refletir sobre a cruz de Cristo: “Foi ele (Cristo) o cordeiro que não abriu a boca, o cordeiro imolado, nascido de Maria, a bela ovelhinha; retirado do rebanho foi levado ao matadouro, imolado à tarde e sepultado à noite; ao ser crucificado, não lhe quebraram osso algum e ao ser sepultado, não experimentou a corrupção; mas ressuscitando dos mortos, ressuscitou também a humanidade das profundezas do sepulcro” (Liturgia das Horas II, p.401).

            Os Lamentos do Senhor vão até o fundo de nosso coração: “Que te fiz, meu povo eleito? Diz em que te contristei? Que mais podia ter feito, em que foi que te faltei? Deus santo, Deus forte, Deus imortal, tende piedade de nós!