Artigo

Artigo: COMO POSSO APRENDER A SER “EU MESMO”

COMO POSSO APRENDER A SER “EU MESMO”*

(O caminho do crescimento espiritual)

 

Enzo Brena

Texto original em italiano em: Testimoni, 29/02/04, p. 9-11

            Dentro de cada pessoa esconde-se um pecado de que muitas vezes ela não se dá conta. É que não sabe crescer no ritmo dos próprios anos. Assim ela corre o perigo de permanecer sempre imatura, descurando o projeto de Deus para a vida de cada mulher e cada homem. Pode então viver correndo atrás de uma autoimagem idealizada – e por isso mesmo falsa – negando o que na verdade é.

            Quando se fala de pecado em geral, quase sempre se faz referência à transgressão de um mandamento. Mas esta é uma forma muito reducionista de ver as coisas.

            Os psicólogos dizem que dentro de cada um de nós há outros pecados, escondidos, dos quais nem temos consciência. Um desses pecados consiste em negligenciar o próprio crescimento e a meta da vida, tal como o Criador determinou e como se acha inscrito nas leis da natureza. Temos aqui o pecado de permanecer imaturo (imatura), de não crescer no ritmo dos nosso próprios anos.

            Abordando essa questão, Estanislau Glaz, Jesuíta, professor de Psicologia no Ignatianum de Cracóvia (Polônia), escreve o seguinte:

“Se queremos crescer, temos de nos manter sempre em contato com nós mesmos e com Deus. A falta de desenvolvimento pessoal leva a constrições internas, que têm como resultado fazermos mal a nós mesmos e aos outros.¹”

            Muitos clérigos, psicólogos e teólogos costumam perguntar: O que se pode fazer para favorecer o crescimento espiritual e, por conseguinte, promover o crescimento da própria personalidade? Quais seriam as condições essenciais para um desenvolvimento ou crescimento apropriado? Diversos psicólogos e teólogos tentaram responder a essas perguntas, mas em geral se limitaram a pôr ênfase sobre os aspectos ascéticos e teológicos. Mas, hoje, a psicologia da espiritualidade faz entrar em jogo um número maior de fatores do que o fazia anteriormente a teologia.

Reconciliar-se consigo mesmo e com os outros

             Muitos psicólogos, observa Estanislau Glaz, pensam que um indivíduo, se pretende ser capaz de amar o próprio inimigo, deve primeiro aprender a amar o inimigo que habita dentro dele mesmo. Ou seja, deve proceder a uma reconciliação entre os elementos hostis que moram dentro dele: tendências agressivas, inclinações para o ciúme, fobias, tristeza, sentimento de solidão, emoções diversas… Devemos permitir que o sol do amor e da benevolência de Deus brilhe sobre nós e dentro de nós, inclusive sobre todas as coisas escuras e ameaçadoras, estranhas e embaraçosas. A luz do amor, então, transformará o mal.

            O sentimento de culpa se deve, na maioria das vezes, à falta de reconciliação consigo mesmo, ao fato de não se conhecer a verdade sobre si mesmo. Dizem os psicólogos que ele é geralmente necessário, visto nos oferecer a oportunidade de conhecer a verdade sobre nós mesmos. Torna-se então uma bênção. Mas pode também ser uma verdadeira maldição. Aqueles que têm uma atitude negativa para com o próprio sentimento de culpa são incapazes de aceitar a história da própria vida. Revoltam-se contra o fato de terem crescido deste ou daquele jeito, de terem nascido neste ou naquele momento da história, de não terem conseguido realizar os próprios sonhos, de terem sofrido ferimentos muito fundos. Censuram os pais ou a sociedade por não lhes terem dado a chance de um desenvolvimento normal. Sentem-se vítimas, e não aceitam sua situação, suas feridas, seu limitado círculo de experiência. Mas essas pessoas deveriam compreender que seus pais e o próximo não criaram esses limites (percebidos erroneamente como coerções) de propósito, mas só como resultado da experiência de limites análogos em sua vida.

            A reconciliação consigo mesmo – frisa ainda o Pe. Estanislau – desempenha um papel importante no desenvolvimento espiritual da pessoa. Você deve aceitar a pessoa que se tornou – com seus talentos – aceitar igualmente suas fraquezas e seus limites, sua vulnerabilidade e seus medos, sua vacilante perseverança. Você deve aprender a ver tudo aquilo que não lhe agrada dentro de você, tudo aquilo que não gosta de ver, sua baixa autoestima. Trata-se de um processo que dura a vida inteira. Descobriremos deste modo, dia após dia, coisas novas. Temos de aceitar tudo, até a nossa incompletude.

            É necessário levar em conta tudo aquilo que em nossa vida excluímos ou rejeitamos porque não correspondia à imagem ideal que fazíamos de nós mesmos, uma imagem transfigurada e falsa. Temos de admitir que em nossa alma, além do amor e da amizade, moram outros sentimentos, como o ódio, a cólera, a depressão, o medo. Na alma não há só desejos corajosos e altruístas, mas há também regiões sem Deus, que desejam ficar sem que nada as perturbe ou modifique. Se não olhamos com toda a verdade para as nossas emoções, nossos pensamentos e comportamentos, acabamos projetado-os sobre os outros. Mas olhar de frente a plena verdade de nossa vida quer dizer muito mais que lançar sobre ela um olhar superficial. Mas isso exige coragem, ou seja, deixar que se perca a imagem ideal de si mesmo (de si mesma).

Uma vida em sintonia com o amor

             Uma pessoa feliz – escreve o Pe. Estanislau – não é aquela que conseguiu resolver todos os seus problemas ou ignorá-los, mas aquela que está consciente do próprio valor como pessoa, vive sua vida única, é ela mesma, ama os outros e permite que os outros a amem dentro de seus limites. A medida de amor que somos capazes de oferecer aos outros depende do amor que temos por nós mesmos. Cada um de nós é único. Devemos amar o nosso ser, e a estima que temos por nós mesmos não deve ficar comprometida por nossos limites e nossos equívocos. Nem o nosso atual comportamento, nem o dos outros em relação a nós, nem tampouco os nossos sentimentos constituem o índice de nosso valor, que é algo invariável. Existem pessoas que se avaliam tomando por base a definição de beleza ou os modelos propostos pelo ambiente. Esses juízos vão dar origem ao falso “eu” que encobre o verdadeiro, que nos é dado (por Deus) de uma vez para sempre.

            Cada um possui o seu próprio “eu” autêntico, a sua essência, a sua marca espiritual. E é aqui que Deus está presente, onde os medos e os sofrimentos não conseguem penetrar. Quem permite ao próprio “eu”, o “eu” autêntico, que é espiritual, dirigir as próprias ações faz de sua alma uma cidadela segura onde Deus vive e onde reina a liberdade. Essa esfera interior e invulnerável. Uma pessoa não pode jamais ser privada de sua dignidade intrínseca. Mas urge descobri-la e sentir a Deus como o fundamento da existência, de toda a vida humana. Deus me dá a vida, e nela me mantém. Meu valor não depende do fato de ser bem sucedido num exame, nem do juízo dos outros. Depende de ser aquilo que sou. E Deus quer que eu seja eu mesmo. Meu valor não vem de nenhum outro, a não ser de Deus mesmo.

O caminho da experiência da fé

             Fé não é apenas a doutrina da Igreja, não é apenas uma dimensão espiritual, mas é também a maneira característica de perceber a realidade; é a percepção apropriada de Deus, dos outros e de mim mesmo. É a arte de uma vida saudável, a arte do juízo confiante em mim mesmo, de me tratar a mim mesmo de maneira apropriada.

            A fé é o caminho para a liberdade: é a confiança em Deus, é a convicção que Deus alcança com ternura todas as regiões do meu ser, que a sua graça penetra cada cantinho da alma humana, para levar até aí a luz de sua vida. A fé me possibilita compartilhar com Deus todos os meus segredos. É a certeza de que por Cristo e em Cristo os seres humanos chegam à participação na vida divina e de que toda a criação se acha impregnada de Deus.

            O verdadeiro amor – continua Pe. Estanislau – não depende só de estar livre de um poder exterior, do poder deste mundo e da autoridade de outra pessoa, mas também de estar livre de toda coação que venha de dentro da pessoa. Alguns limites da nossa liberdade podem provir de tendências comportamentais herdadas. Minha liberdade fica limitada quando não conheço a Deus, quando perco minha autoestima, quando crio uma falsa imagem de outras pessoas, quando sigo servilmente o papel de modelos que me foram dados pelos pais, quando me deixo dominar pelo medo da solidão ou ainda quando o meu modo de perceber a vida e o mundo é falso.

            Acontece às vezes – continua Pe. Estanislau – que nos educaram para alcançarmos metas inatingíveis. Isto acontece, por exemplo, quando não aceitamos que Deus nos tenha criado para sermos quem somos. Achamos que nossa ideia imaginária tem mais importância que a vontade de Deus. Não procuramos desenvolver o que Deus nos concedeu; não realizamos muitas das possibilidades concretas em nossa vida. Temos dentro de nós uma imagem de nós mesmos derivada ou dos nossos pais ou dos nossos professores ou, quem sabe, de nossas ambições, dos nosso sonhos de sermos um herói ou uma heroína. Pensamos então que seremos capazes de fazer qualquer coisa sem o auxilio de ninguém. Pensamos que somos capazes de moldar o mundo a nosso bel-prazer, sem levar em conta a ordem que Deus lhe deu.

            As pessoas que vivem se esticando sempre na ponta dos pés, acabam caindo na própria armadilha. Resistir a Deus significa resistir à própria vida. É causar dano a si mesmo, a si mesma. O egoísmo investido na autorrealização afasta do amor ao próximo. Essas pessoas procuram a própria identidade e seu valor naquilo que possuem, porque não souberam encontrar valor em si mesmas, enquanto criaturas amadas por Deus.

            Não querem admitir que estão erradas e que podem enganar-se. Procuram assim mascarar os sinais dos seus equívocos. Fazem um imenso esforço até chegarem a uma conclusão lamentável, em vez de admitirem que se equivocaram em sua decisão inicial.

            O medo de um juízo negativo a seu respeito é mais forte que o medo de prejudicar-se: que poderá acontecer, se os outros descobrirem como sou fraco e falível? E deste modo criam problemas para os outros, superestimando a própria capacidade de controlar os prejuízos. Falta a essas pessoas o equilíbrio. Seu pensamento é “tudo ou nada”: se não faço grandes coisas, a todo custo, isto quer dizer que sou vazio e insignificante, sou um zero à esquerda.

O perigo de um falso ascetismo

             Um ascetismo sadio se caracteriza por uma atitude positiva diante de si mesmo (de si mesma). Cabe ao verdadeiro ascetismo nos manter, ainda que alguns o considerem como negação do prazer de viver e uma inibição dos impulsos naturais. O conceito de afirmação e desenvolvimento da vida não significa sua negação. Um ascetismo patológico, escreve Pe. Estanislau Glanz, implica uma imagem pobre de Deus, da qual podem derivar-se insensibilidade e desejos destrutivos, que são facetas do perfeccionismo. Os perfeccionistas querem ser como Deus. Criam para si mesmos um sistema de controles, de princípios e mandamentos detalhados. Obedecer a esse sistema passa a ser o objetivo de sua vida.

            Os perfeccionistas se privam de qualquer prazer e vivem somente à procura do sacrifício. Querem livrar-se de tudo aquilo que é negativo dentro deles. Não têm confiança em Deus. Não creem que de algum modo tudo tem um sentido e que Deus pode transformar positivamente tudo aquilo que parecer negativo na vida deles.

            A atitude das pessoas perfeccionistas manifesta, por outro lado, uma enorme falta de confiança no ser humano. Pensa-se, de acordo com isto, que os indivíduos são bons somente quando fazem alguma coisa, como recitar o maior número possível de orações. Mas na realidade somente uma sólida fé no verdadeiro Deus oferece o gênero da confiança de que uma pessoa necessita para levar uma vida serena e construtiva, sem temores. Aqueles que não têm confiança no amor incondicional de Deus sentem muita dificuldade para lidar com a culpa, presente também nas pessoas que se esforçam para sempre serem boas. A pessoa que não confia em Deus não compreende o significado da Cruz que Jesus levou às costas nem porque temos de levar também a nossa cruz com Ele. Vivem de maneira teimosa de acordo com os próprios ideais, e sua vida se torna sempre mais rígida, até assumirem atitudes neuróticas. Em suma, um ascetismo desse tipo vem a ser um processo de autodestruição.

            O desenvolvimento espiritual – como conclui o Pe. Estanislau Glaz – só pode acontecer corretamente quando a pessoa abandonar a ilusão de ser ela o próprio criador de sua vida e se não abandonar as ilusões relativas ao futuro. Uma dessas ilusões consiste em acreditar que somos nós mesmos os autores da nossa justiça, do amor e da verdade. Na verdade, somos transformados por Cristo, fomos chamados por Cristo a uma vida nova, a um pleno desenvolvimento. Viver essa vida nova significa viver em harmonia com o nosso íntimo chamado, não ceder às expectativas e cobranças que nos são impostas pessoalmente ou que outros nos tenham imposto. Significa deixar que Deus mesmo nos crie e nos molde. Viver sob a direção e o poder do Espírito Santo quer dizer estar livre dos grilhões com que pretendemos provar o nosso valor. Significa viver uma vida baseada no reconhecimento de tudo aquilo que recebemos das mãos do Pai de Jesus Cristo e nosso Pai.

            O objetivo da vida consiste em viver essa realidade e descobrir de novo como é belo viver o nosso “eu” pessoal, como é belo mostrar o nosso rosto verdadeiro, o rosto que Deus nos deu.

*Grande Sinal – Revista de Espiritualidade. Ano LXI, 2007, Março-Abril. Editada pelo Instituto Teológico Franciscano, Petrópolis, RJ. Pg. 181-187.

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  1. The Spiritual Development of Individuals, in: Review for Religious 2004, fasc. 1.