Catequese: Maria nas Escrituras
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Catequese: Maria nas Escrituras

Esse texto faz parte da nossa série de artigos catequéticos que serão publicados todas às quartas do mês de Maio sobre Maria.

Que o Espírito Santo tenha esboçado um papel da Mãe de Deus no plano da Salvação parece-nos, hoje, claro. Mas ao longo da história foi preciso discernimento e coragem para proclamar a fé eclesial em Maria e encontrar seus sinais na Sagrada Escritura. Apresentamos aqui os principais textos, que se complementam entre o Primeiro e Segundo Testamento, sobre Maria. Antes da vinda de Cristo, não se saberia responder a esta pergunta: Quae est ista? Quem é esta? (Ct 3,6; 6,9). A mulher, cujo lugar foi esboçado no reino messiânico, era questionada: seu espaço na coletividade, nas citações bíblicas, na associação com a Igreja, ou como uma mulher extraordinária, a mãe do Messias e sempre Virgem. Assim, ao nascer, podemos reconhecer que todos estes atributos pertencem à ela.

Tomar esta posição não é negar que Deus tenha previsto de longe a Virgem Maria, ou que tenha desenhado alguns traços de sua fisionomia; mas é querer considerá-los sob a luz sem a qual eles não nos revelariam seu sentido. Reconhecer quanto estava latente (não aparente) no Antigo Testamento o que se tornou patente (evidente) no Novo. Do ponto de vista bíblico-moral à humanidade, corrompida pelo pecado, Deus destaca uma linhagem de fé e santidade, da qual seu Filho pudesse nascer da raça humana sem a “contaminação” pelo pecado.

Outro ponto de vista que podemos analisar é Midrash[1]: Deus se revela progressivamente pelo seu Filho. A Sagrada Escritura e a Tradição[2] possuem autoridade para classificar estas três prefigurações de Maria: a primeira são as mulheres do Antigo Testamento, notadamente as que foram favorecidas com nascimentos milagrosos, as que foram ancestrais do Messias, que favorecem o triunfo e a Salvação de Israel. É aplicado a respeito de Maria, os termos que se referem a Sara, “nada é impossível a Deus”  (Gn 18,14 e Lc 1,37), e a Judite (Jdt 13,18-19 e Lc 1,42); Lucas apresenta os primeiros marcos desta prefiguração.

A segunda: aproximar Maria do povo de Israel. Em seu conjunto, é identificada como a Filha de Sião, em Sofonias 3,14-17: “Alegra-te, filha de Sião! Canta, Israel! Alegra-te e exulta, de todo o coração, ó filha de Jerusalém! O Senhor teu Deus está em teu seio como um valente Salvador!”. Estas palavras do Senhor, dirigidas a Sofonias, são como em Lucas 1,28-33, na qual o Anjo diz, ao visitar Maria: “Alegra-te cheia de graça, o Senhor está contigo…não temas Maria, eis que conceberás e gerarás um filho, e lhe imporás o nome de Jesus (Deus salva)…Ele reinará”.

É possível também perceber esta aproximação no livro do Apocalipse, capítulo 12: “Apareceu em seguida um grande sinal no céu: uma Mulher revestida do sol, a lua debaixo dos seus pés e na cabeça uma coroa de doze estrelas. Estava grávida e gritava de dores[3], sentindo as angústias de dar à luz.”. Apesar da dor e momentos confusos, a mulher sabe que isto é preparação para um novo tempo. Assim Maria é a comunidade cristã, o povo messiânico e Mãe do Messias.

Nos versículos 3-6, o dragão, que é o inimigo de Deus (bicho de sete cabeças) com seus dez chifres (poder) e com sete diademas[4] (sinal de autoridade aparentemente perfeita), quer devorar o Filho da Mulher, como as forças do Mal fizeram com Jesus em sua vida, a ponto de levá-lo à morte. Nos versículos 7-17 o Dragão, o líder do Mal, e seus guerreiros, combatem contra os anjos de Deus e perdem a luta nos “bastidores” (céu). João, autor do Apocalipse, tem claro que Deus já venceu a guerra; os cristãos também, especialmente os que, como Jesus, são capazes até de morrer para serem fiéis ao Bem, à Verdade. Muitas vezes sentimos no deserto, para onde a mulher foge, um lugar desprotegido. Encontramo-nos: frágeis, tristes, cercados pela maldade. Apesar disso, somos constantemente envolvidos e salvos por Deus. Assim, este texto refere-se à comunidade dos seguidores de Jesus, a Igreja perseguida; mesmo que o povo de Deus sofra permanecendo ao lado da Verdade, e o poder do Mal pareça mais forte, Deus garante a vitória, a glorificação como seu Filho.

Por fim, a terceira prefiguração: sendo a Filha de Sião o lugar onde Deus escolhe visitar-nos (habitar, morar), a Igreja vê, em Maria, a arca da Aliança, o lugar da residência da Salvação por Jesus. Em Exôdo 40,35: “a nuvem cobriu com sua sombra o tabernáculo, e a Glória de Deus encheu a morada”. Esta “sombra divina” evoca a nuvem que manifestava a presença de Deus cobrindo a arca da Aliança, e a preenchendo internamente com sua glória. Em Lucas 1,35: “A sombra do Altíssimo te cobrirá”. Maria vai ser o lugar desta dupla manifestação: a presença do alto que a visita, e a presença interior do Senhor na geração do Filho de Deus.

Ainda no segundo livro de Samuel 6,9.11: “Como a arca de meu Senhor vem ao meu encontro? A Arca ficou três meses na casa”. A arca é transportada para a casa de Davi, acolhida com alegria, e fica três meses na casa de Obed-Edom de Gat[5], na qual o Senhor abençoa sua casa. Em Lucas 1,43.56: “Como a mãe do meu Senhor vem a mim? Maria ficou cerca de três meses em casa dela (Isabel)”. A visita a sua prima se dá como a arca que visita Davi, enquanto é terminado o Templo; a subida da arca tem profunda relação com a elevação de Maria, com gritos de alegria do povo, e o grito de Isabel com a saudação. A súplica de espanto por parte de Davi e João Batista que estremece no ventre de Isabel.

Podemos, ainda, relacionar Eva e Maria: “porei inimizade entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela. Esta te ferirá a cabeça e tu lhe ferirás o calcanhar” Gn 3,15. Nesta narrativa busca-se entender o plano salvífico de Deus, que não é interrompido pela inclinação ao mal por parte de Adão e Eva. Este texto é uma promessa de esperança, pois Deus não abandona o ser humano no fracasso, longe do paraíso. O bem triunfará, quando a humanidade (a descendência da Mulher) destruir a fonte do veneno que a contamina. Quem esmagará a cabeça da serpente? A descendência da mulher. Originalmente, um dos filhos da mulher pisa a cabeça da serpente, o Mal. A tradução dos setenta[6] compreendeu a posteridade da mulher no sentido de um descendente misterioso: “Ele observará a tua cabeça”. Os escritos paulinos enfatizam a posteridade no sentido de um único, o Messias: “Ora, as
promessas foram feitas a Abraão e à sua descendência”. A Escritura não diz: “e às
descendências”, como para significar muitos descendentes; ela diz: “e à tua descendência”, designando assim um só descendente, Cristo. (Gl 3,16).

Para afirmar que Maria é a nova Eva, façamos o seguinte caminho: primeiro nas bodas de Caná: “mulher minha hora ainda não chegou” (Jo 2,4); aqui Jesus não trata a mãe com aspereza, mas está sugerindo que o que Ele vai fazer agora ainda não é sua obra propriamente, obra que ele cumprirá quando chegar a sua hora na cruz[7].

O termo mulher (também utilizado para a Samaritana 4,21 e Maria Madalena em 20,15) é analisado simbolizando que João quis evocar o contexto de Gn 3, 15.20, onde Eva é, ao mesmo tempo, chamada de mulher e mãe de todos os viventes, podendo fazer ligação com a Sião messiânica, mãe de todos os homens neste sentido, como já explicado anteriormente.

Eva foi causa de morte para si e Adão – e para todo homem – ao olhar para trás e ouvir o tentador, introduzindo na humanidade o pecado pela desobediência e pelo orgulho; a “segunda Eva”, Maria, torna-se causa de salvação para si e para humanidade por causa do seu “sim” (obediência) a Deus, introduzindo a redenção e a vida ao homem porque, na sua humildade, traz ao mundo a Graça que só ela tinha achado, voltou-se e fincou os olhos em Deus. (Santo Ireneu de Lião. Séc. II).

Em segundo lugar, ela está presente na hora (cruz) do Filho em Jo 19,25-27: “Jesus, ao ver sua mãe e, ao lado dela, o discípulo que ele amava, disse à mãe: “Mulher, eis o teu filho!” Depois disse ao discípulo: “Eis a tua mãe!”. Na tradição popular, fortaleceu a imagem de “Maria, mãe das dores”, que padece com seu Filho, inspirando o sofredor a enfrentar, com coragem e perseverança, as cruzes de sua existência.

O discípulo e a mãe recebem esta revelação de Deus, refletida na cruz, sustento da alma de todo discipulado que, pela fé no Filho, testemunha a fidelidade e é enviado para sua hora, a fim de revelar o amor que brota desta cruz, e continuar a missão do Pai dada ao Filho; na qual se manifesta, na morte e no sofrimento, pela força do Espírito (que traz a memória de tudo o que Jesus lhes disse – 14,26), entregue do lado aberto pelo sangue e a água viva, fonte da vida eterna (19,34). Revela sua força na fraqueza da humilhação. É fraco porque ama. Age, portanto, diferente do mundo (15,15-20): Jesus não se exibe para ser admirado e aplaudido, derrotado na morte terrena, como um maldito. Não realiza os milagres para aglomerar “massas” como um guru, em uma espécie de onipotência mágica. O acesso a Deus se dá na glória da cruz.

Por fim, Maria está prefigurada no Antigo e revelada no Novo Testamento, com seu sentido e papel. Deus é o autor da história religiosa de Israel, Ele a conduz para um fim redentor. Ele é, mais precisamente, o autor das escrituras inspiradas, cuja aparente diversidade é orientada para este mesmo fim, que é o Cristo Salvador. O que é verdadeiro de Cristo estende-se, secundariamente, a Maria e a igreja, pois elas fazem parte da obra da salvação e se plenificam com Cristo.

Padre Ivan Soares

Diretor Espiritual do Secretariado de Itapetininga

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[1] É a leitura comparativa dos testamentos (Antigo e Novo) encontrando em um texto e explicação de outro. A revelação da Escritura judaica (Torá) tendo plena revelação em Jesus Cristo.

[2] A Tradição católica, ou a Tradição Apostólica, é a autoridade e a ação contínua da Igreja Católica, especialmente do seu Magistério, que através dos apóstolos e da sucessão apostólica (os Papas e os Bispos unidos ao Papa), transmite “tudo aquilo que ela, a Igreja, católica é e tudo quanto ela Crê”.

[3] A dor de parto na Bíblia significa a crise que acompanha a passagem para uma situação nova, na qual a vida vai triunfar, nascer.

[4] Metal em formato de meia coroa que os reis e as rainhas portavam sobre a cabeça.

[5] Soldado levita que viveu nos dias de Davi.

[6] A tradução ficou conhecida como a Versão dos Setenta (ou Septuaginta: Bíblia hebraica -antigo testamento em hebtraico- traduzida em etapas para o grego koiné, entre o século III a.C. e o século I a.C., em Alexandria, palavra latina que significa setenta, ou ainda LXX), pois setenta e dois rabinos (seis de cada uma das doze tribos). Segundo a tradição, teriam completado a tradução em setenta e dois dias.

[7] KONINGS, Evangelho segundo João, p.101.

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