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Catequese: A Alegria do Evangelho: Comunidade e Missão

A Alegria do Evangelho: Comunidade e Missão

“Alegrai-vos sempre no Senhor” Fl 4,4

Esse texto faz parte da nossa série de artigos catequéticos que serão publicados todas às quartas do mês de Julho sobre a Exortação Apostólica Evangelii Gaudium.

A primeira Exortação[1] Apostólica do Papa Francisco, intitulada Evangelii Gaudium, (A alegria do Evangelho), foi publicada no jornal L’Osservatore Romano, folha diária da Santa Sé, no dia 20/02/2014 (p.13), e também na Acta Apostolicae Sedis, periódico oficial da Igreja Romana, conforme o Cânon 8 do Código de Direito Canônico. Apresenta o itinerário doe seu Pontificado: “A alegria do Evangelho enche os corações e vidas inteiras dos que se encontram com Jesus, e os que se deixam salvar por ele são libertados do pecado, tristeza, vazio interior, isolamento. Com Jesus Cristo, a alegria sempre nasce e renasce”[2]. O Papa se dirige aos fiéis cristãos para convocar a seguir um caminho de evangelização que tem como virtude a alegria.

Esta é a atitude do cristão que vive segundo o Espírito que flui do coração de Cristo Ressuscitado. A misericórdia de Deus nos impulsiona à gratidão, nos elegendo sempre. Quando cedemos à tentação de buscá-lo onde Ele não está – ofertas consumistas, tristeza individualista, comodismo, mesquinhez, consciência isolada e busca desordenada de prazeres superficiais – devemos rezar: “Senhor, deixei-me enganar, de mil maneiras que fugi do seu amor, mas estou aqui mais uma vez para renovar minha aliança com você. Eu preciso de você. Redime-me novamente Senhor, aceite-me mais uma vez em seus braços redentores” (EG 3).

Vale a pena aprofundar o que de fato significa esta palavra: Misericórdia. Deus fala com Moisés face a face e revela-Se:

“Yaweh desceu na nuvem e esteve junto dele, pronunciando. Yaweh passou diante dele, e ele exclamou: Yaweh, Yaweh, Deus de ternura e piedade, lento para a cólera, rico em graça e fidelidade…Moisés inclinou-se até a terra e prostrou-se”. (Ex 34, 5ss)

A experiência histórica do Êxodo também frutificou em obras e palavras divinas, devido a misericórdia de Deus, que ouve com compaixão o clamor do povo sofredor e, assim, decide libertá-los do Egito, mesmo sabendo que poderia ser traído (Ex 3,7; 34).

Tudo o que está em negrito pertence a um verbo hebraico feminino: Hesed[3], que no grego Koiné, língua do Novo Testamento, traduz-se por misericórdia: diz-se éléos. Esta palavra é familiar através da oração Kyrie eleison (Oração do Ofício da Santa Missa: Ato Penitencial), que é um apelo à misericórdia de Deus. Eléos traduz ainda outra palavra hebraica, rahamîm. Esta se associa frequentemente a hésèd, mas está mais carregada de emoções. Literalmente, significa as entranhas; é uma forma plural de réhèm, o seio materno. A misericórdia, ou a compaixão, é aqui o amor profundo: a afeição de uma mãe pelo seu filho (Isaías 49,15); a ternura de um pai pelos filhos (Salmo 103,13); um amor fraternal intenso (Génesis 43,30).

Sabendo disso apresentamos ainda oura tentação elucidada pelo Papa: pensar que este convite é apenas para uma classe eleita; não se engane, pois ninguém é excluído da alegria trazida pelo Senhor. O que acontece é que esta Boa Notícia ainda não foi comunicada: “Eleve a sua voz com força, você que anuncia boas novas em Jerusalém” (Is 40,9). Toda a criação participa dessa alegria da salvação: “Alegrai-vos, céus, alegrai-vos, ó terra, clamai por alegria, ó montanhas, porque o Senhor consola seu povo e tem misericórdia de seus pobres” (Is 49,13). O cristão, inebriado da verdadeira alegria, encontra sentido nas pequenas coisas do cotidiano, transformando o ordinário em extraordinário, porque aprendeu a fazer tudo a partir do amor: “Não é o quanto fazemos, mas quanto amor colocamos naquilo que fazemos. Não é o quanto damos, mas quanto amor colocamos em dar”, diz Santa Madre Teresa de Calcutá.

O Papa cita inúmeros exemplos que Sua intervenção alegrou a realidade de seus Filhos:

“Alegrai-vos” é a saudação do anjo a Maria ( Lc 1:28). A visita de Maria a Isabel faz com que João pule de alegria no ventre de sua mãe (cf. Lc 1, 41). Em sua canção, Maria proclama: “Meu espírito se alegra em Deus, meu salvador” ( Lc 1,47). Quando Jesus inicia seu ministério, João exclama: “Agora esta minha alegria está cheia” ( Jo 3:29). O próprio Jesus “exultou com alegria no Espírito Santo” ( Lc 10, 21). Sua mensagem é fonte de alegria: “Eu lhes disse estas coisas para que minha alegria esteja dentro de você e sua alegria seja completa” ( Jo.15,11). Nossa alegria cristã brota da fonte de seu coração transbordante. Ele promete aos discípulos: “Você ficará triste, mas a sua tristeza se transformará em alegria” ( Jo 16:20) EG 5

Esta alegria brota da cruz gloriosa de Cristo. Ser Filho de Deus não é estar blindado dos problemas, impermeabilizado dos sofrimentos, imunizado das doenças ou ganhar privilégios – isto jamais será cristianismo. Esta alegria tem como fonte o lado aberto de Cristo, e precisamos viver desta novidade. Nisto tornamo-nos verdadeiramente humanos e, como o Salmista, “não tememos receber notícias más, pois nossa fé se mantém firme e confia no Senhor” (Sl 127,7), pois “o amor de Cristo nos impele” (2Cor 5,14). O Papa nos convoca a sermos Arautos da Esperança. Em meio a tantas notícias ruins e falsas, devemos anunciar o Querigma[4]. Aprofundemos as palavras: Arauto e Querigma.

A origem do uso desse termo (Querigma), vem, exatamente, do verbo grego “kerysso, que por sua vez, significa proclamar por um mensageiro (kéryx) um decreto autorizado pelo soberano.  A palavra grega “kéryx significa justamente “pregador, mensageiro”. Assim, jamais se atrevia a mudar a mensagem, porque ela não era sua. Ele era apenas o portador, e seu dever era transmiti-la integralmente, para que ela fosse ouvida e acolhida por todos naquela região. Algo semelhante aconteceu na idade média com o ofício do “Arauto”, que consistia em tornar conhecida a vontade do seu Senhor, em anunciar suas palavras, em proclamar suas sentenças. O Arauto era o oficial que fazia as publicações solenes, anunciava a guerra e proclamava a paz, ou seja, era o mensageiro (singular) do rei.

O Arauto da esperança é aquele que, sem medo, “anuncia Cristo aos homens, os adverte e os instrui em toda sabedoria, a fim de apresentá-los todos, perfeitos em Cristo” (Col 1, 24-29), revelando a vontade de Deus aos homens. Mas esta Boa Notícia deve ser anunciada para dignificar o ser humano, com a consciência comunitária. Não pode ser como qualquer notícia importante, na qual os jornais competem entre si e disputam para conseguir o famoso furo[5] de reportagem.

Assim, a Igreja procura tornar conhecida toda a riqueza revelada por Cristo e recebida por nós, que “trazemos em vasos de barro o tesouro do nosso ministério, para que se reconheça que um poder tão sublime vem de Deus e não de nós… Levamos sempre no nosso corpo os sofrimentos da morte de Jesus, a fim de que se manifeste, também no nosso corpo, a vida de Jesus” (2Cor 4,7.10).  A Boa Nova deve perscrutar um itinerário humano e comunitário, espiritual e intelectual, pastoral e missionário, tendo como ponto nevrálgico a Sagrada Escritura: envolver o conhecimento da fé (eu creio), a celebração dos mistérios da fé na Liturgia (eu celebro) e a prática da fé que se expressa nas virtudes a na vida moral (eu vivo).

Portanto: de que alegria estamos falando? O Papa responde:

“A tentação aparece frequentemente na forma de desculpas e recriminações, como se houvesse inúmeras condições para que a alegria fosse possível. Isso acontece porque “a sociedade tecnológica conseguiu multiplicar as oportunidades de prazer, mas é difícil obter alegria”. Posso dizer que as alegrias mais belas e espontâneas que vi no decorrer da minha vida são as de pessoas muito pobres que têm pouco a que se apegar”. (EG 7)

E esta alegria que antecipa a experiência da glória é somente possível graças ao encontro (ou reencontro) com o amor de Deus, terminando sempre em uma linda amizade, que nos enriquece e nos faz encontrarmos o nosso ser mais verdadeiro. Nesta fonte é que se funda a comunidade e missão: “O bem sempre tende a se comunicar. Toda experiência autêntica de verdade e beleza busca por si mesma sua expansão, e toda pessoa que experimenta uma libertação profunda adquire maior sensibilidade diante das necessidades dos outros. Ao comunicá-lo, o bem cria raízes e se desenvolve” (EG 9).

O grande bordão do Papa no início de seu pontificado expressa o espírito que a comunidade precisar sempre nutrir para a missão: “Consequentemente, um evangelizador não deve ter sempre um rosto de funeral. Recuperamos e aumentamos o fervor, a doce e reconfortante alegria de evangelizar, mesmo quando é necessário semear em lágrimas […]  Que o mundo de nosso tempo – que agora está angustiado, agora com esperança – receba as Boas Novas não de tristes evangelizadores” [6] (EN 75). O discípulo missionário tende a ter um rosto de funeral quando não consegue olhar para a razão e conteúdo de sua missão: Jesus Cristo, vivo e Ressuscitado, ou quando cria a ilusão de sentir-se superior àqueles que nem conhecem a Deus.

“Um pequeno passo, no meio de grandes limitações humanas, pode ser mais agradável a Deus do que a vida externamente correta de quem transcorre os seus dias sem enfrentar sérias dificuldades. A todos deve chegar a consolação e o estímulo do amor salvífico de Deus, que opera misteriosamente em cada pessoa, para além dos seus defeitos e das suas quedas” (EG 44). Sem relativizar o Evangelho, é preciso acompanhar, com misericórdia e paciência, as possíveis etapas do nosso crescimento na fé, que se edifica dia após dia. Para que não nos tornemos controladores da graça, transformando a Igreja numa alfândega ou lugar de merecedores, como que vendedores de um prêmio para perfeitos; com o coração contrito e discernida consciência, não renunciemos ao bem possível e, assim, corramos o risco de sujarmo-nos com a lama da estrada.

Por fim, a essência da comunidade que está em constante estado de missão e saída é uma Igreja de portas abertas, como na parábola do Pai misericordioso que espera o Filho para, quando voltar, possa entrar sem dificuldade. Mas que destino busca esta Igreja? Chegar às periferias geográficas e existenciais. O Papa insiste em privilegiar: “não tanto aos amigos e vizinhos ricos, mas sobretudo aos pobres e aos doentes, àqueles que muitas vezes são desprezados e esquecidos, “àqueles que não têm com que te retribuir” (Lc 14, 14). Cita o discurso que constantemente fazia aos sacerdotes e leigos em Buenos Aires: “

“Prefiro uma Igreja acidentada, ferida e enlameada por ter saído pelas estradas, a uma Igreja enferma pelo fechamento e a comodidade de se agarrar às próprias seguranças. Não quero uma Igreja preocupada com ser o centro, e que acaba presa num emaranhado de obsessões e procedimentos. Se alguma coisa nos deve santamente inquietar e preocupar a nossa consciência é que haja tantos irmãos nossos que vivem sem a força, a luz e a consolação da amizade com Jesus Cristo, sem uma comunidade de fé que os acolha, sem um horizonte de sentido e de vida. Mais do que o temor de falhar, espero que nos mova o medo de nos encerrarmos nas estruturas que nos dão uma falsa proteção, nas normas que nos transformam em juízes implacáveis, nos hábitos em que nos sentimos tranquilos, enquanto lá fora há uma multidão faminta e Jesus repete-nos sem cessar: «Dai-lhes vós mesmos de comer» (Mc 6, 37). EG 49

Devemos questionar nosso discipulado: “Com efeito, um amor que não sentisse a necessidade de falar da pessoa amada, de apresentar, de a tornar conhecida, que amor seria? Se não sentimos o desejo intenso de comunicar Jesus, precisamos de nos deter em oração para Lhe pedir que volte a cativar-nos. Precisamos de o implorar cada dia, pedir a sua graça para que abra o nosso coração frio e sacuda a nossa vida tíbia e superficial. Colocados diante d’Ele com o coração aberto[7] como Maria, a estrela da nova evangelização que intercede por nós e pela Igreja, mulher que caminha na fé: “e a sua excepcional peregrinação da fé representa um ponto de referência constante para a Igreja’[8]. Que também sejamos conduzidos pelo Espírito rumo ao caminho do serviço e fecundidade. Encerremos com a oração proposta pelo Papa ao final da Exortação Apostólica:

Virgem e Mãe Maria,
Vós que, movida pelo Espírito,
acolhestes o Verbo da vida
na profundidade da vossa fé humilde,
totalmente entregue ao Eterno,
ajudai-nos a dizer o nosso «sim»
perante a urgência, mais imperiosa do que nunca,
de fazer ressoar a Boa Nova de Jesus.

Vós, cheia da presença de Cristo,
levastes a alegria a João o Baptista,
fazendo-o exultar no seio de sua mãe.
Vós, estremecendo de alegria,
cantastes as maravilhas do Senhor.
Vós, que permanecestes firme diante da Cruz
com uma fé inabalável,
e recebestes a jubilosa consolação da ressurreição,
reunistes os discípulos à espera do Espírito
para que nascesse a Igreja evangelizadora.

Alcançai-nos agora um novo ardor de ressuscitados
para levar a todos o Evangelho da vida
que vence a morte.
Dai-nos a santa ousadia de buscar novos caminhos
para que chegue a todos
o dom da beleza que não se apaga.

Vós, Virgem da escuta e da contemplação,
Mãe do amor, esposa das núpcias eternas
intercedei pela Igreja, da qual sois o ícone puríssimo,
para que ela nunca se feche nem se detenha
na sua paixão por instaurar o Reino.

Estrela da nova evangelização,
ajudai-nos a refulgir com o testemunho da comunhão,
do serviço, da fé ardente e generosa,
da justiça e do amor aos pobres,
para que a alegria do Evangelho
chegue até aos confins da terra
e nenhuma periferia fique privada da sua luz.

Mãe do Evangelho vivente,
manancial de alegria para os pequeninos,
rogai por nós.

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Pe. Ivan Soares

Diretor espiritual do Secretariado de Itapetininga

[1] A Carta Encíclica pode ter caráter Social, Exortatório ou Disciplinar e é dirigida aos Bispos de todo o mundo e, por meio deles, a todos os fiéis. Por meio dela o Papa exerce seu magistério ordinário. Sua origem se dá nas cartas que os bispos enviavam entre si para assegurar a unidade entre a doutrina e a vida eclesial. Já a Exortação Apostólica tem caráter menos solene (não menos importante) e transmite um ensinamento do papa a respeito de um assunto com o objetivo de animar os fiéis na vivência do mesmo. Geralmente a mesma é publicada após um sínodo, trazendo o conteúdo tratado na reunião dos Bispos. Por exemplo, a Evangelii Gaudium, foi lançada no encerramento do ano da fé e traz a temática trabalhada no último sínodo dos bispos no Vaticano em 2012 “A nova evangelização para a transmissão da fé”. A Bula é um documento selado com o timbre do papa, onde o mesmo se manifesta sobre determinado assunto. Pode ter caráter administrativo, religioso ou político. Já o Motu Próprio tem geralmente a forma de Decreto, significa que se trata de matéria decidida exclusivamente pelo papa e não por um cardeal ou conselheiro.  E por fim a Constituição Apostólica trata de assuntos da mais alta importância, distingue-se em Constituição Dogmática e Constituição Disciplinar, esta última tem caráter pastoral, já a primeira vem trazer a explanação de um dogma como a Lumen Gentium que entre outras coisas fala do culto da bem-aventurada Virgem Maria.

[2] Evangelii Gaudium, 1.

[3] Os significados deste termo no Antigo Testamento (AT) convergem para a tradução como “misericórdia”, mas devido à riqueza e complexidade semântica aparecem, dependendo do contexto e tradução como “bondade”, “benignidade”, “solidariedade”, “graça”, “lealdade”, “agir lentamente”, “amor constante”, “ter misericórdia de”, “ser gracioso”, “misericordioso”, “favor”, “sentimento fraternal e maternal”, “terna misericórdia”, “devoção” e “generosidade”.

[4] O conceito de Querigma (em grego: mensagem) no horizonte do cristianismo se identifica com o de Evangelho, Boa Notícia, anúncio, mensagem de salvação.

[5] Furo é o jargão para a informação publicada em um veículo antes de todos os demais. O furo é dado quando uma equipe de repórteres e editores consegue apurar uma notícia, um fato ou um dado qualquer e publica esta informação sem que os veículos concorrentes tenham acesso a ela.

[6] Paulo VI, Exort. ap. Evangelii nuntiandi (8 de Dezembro de 1975), 80: AAS 68 (1976), 75

[7] EG, 264.

[8] João Paulo II, Carta enc. Redemptoris Mater (25 de Março de 1987), 6: AAS 79 (1987), 366.

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